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  • Foto do escritorRodrigo Souza

Sobre Santa Rita e as Santas Marias e seus filhos


Olha eu ali. Chorando. Nunca tinha me visto chorar, assim, por fora de mim. É uma experiência que foge de qualquer possibilidade de narração. Mas enfim, são três pessoas numa sala, mais uma jovem deitada, com uma criança sobre si. Minha mãe, jovem mãe, que nem sabia o que era ser mãe. Uma jovem bem pequena, com um menino grande e aos berros. Era eu. Sou eu. Ainda não sei se é uma improvável memória ou se eu é quem voltei aqui. Nesse dia o cordão umbilical foi rompido. Mas ele haveria de se romper de novo, e de novo. Algumas vezes. Mas ainda não é tempo de falar disso.

É quente a sala da maternidade chamada Santa Rita. Santa Rita. Rita de Cássia. Soube que ela casou-se cedo. Aos treze, já era esposa de um severo homem. Teve dois filhos. Seu marido foi assassinado causando no coração dos filhos o desejo de vingança. Rita não queria vê-los envenenados pelo ódio, preferia que suas vidas fossem recolhidas a Deus a viverem imersos num viver envenenado. Na época, a peste veio com furor, onde Rita residia, e levou seus filhos antes de qualquer ato vingativo. Foi arrasador. Foi arrasador para Rita. Viúva e sem os filhos a quem tanto amou que os quis vê-los partir. Às vezes, a mãe, resta a entrega dos filhos pela impossibilidade de entrega aos filhos. Ela passou a dedicar-se a cuidar de outros, talvez numa culpa calada por ter desejado o que desejou. Entregou-se às pessoas atingidas pela peste, mas nunca fora atingida por ela. Decidiu tornar-se freira após ver que pouco lhe restou a não ser santificar a culpa e desejar melhores coisas a quem ainda na terra estava. Precisou ser persistente, pois, como virgem não mais era, foram três tentativas até ser aceita no convento.

Rita de Cássia se tornou a santa das causas impossíveis. Uma adolescente que tornou-se mãe numa vida dura, de desastres sucessivos e da redenção pelo acolhimento do outro e, talvez de si mesma. Santa Rita de Cássia, rogai pelas jovens. Por todas elas. Rogai pela minha mãe neste leito. Ela não imagina o que lhe aguarda pela frente. E rogai por mim deitado ali, sem nada saber, como ainda nada sei.

Nada sei quanto a minha condição de agora. Não sei se morri e aqui estou a acompanhar a trajetória da minha vida. Não me vejo, no sentido corporal, ao estender meus braços, nada físico, apesar de senti-los, não tenho mais estrutura ou massa corpórea. Poderia descrever-me, para ser simplório, uma espécie de energia que sabe de si. Não compreendo o que me trouxe a essa condição e nem me recordo de nada que seja imediatamente anterior ao estado que agora me encontro. Será se sou, agora, o anjo de minha própria guarda? Será se sou o meu próprio demônio que acompanhará e haverá de promover as minhas dores? Não sei dizer ainda o que sou nesse instante. Sei que não desejo mais nada além de carregar a mim mesmo no colo. Me aproximo com uma sensação das mais estranhas que já senti. Se é que já senti mesmo, ou se é produto das invenções que podem ir se criando nesta condição minha. Não sei se esse “eu” repetirá o que eu fiz, ou penso ter feito. Gostaria que não. Gostaria de refazer vários percursos, mas gostaria também de reparar tantos outros. Fazer caminhos mais longos ao invés de atalhos sem sentido.

Os dias se vão e ainda na mesma condição me encontro. Se durmo, não vejo. Se me falam, não ouço. Nada divino me vem do céu. Nada de espinho me vem infernal. Eu sou o espectro que anda a observar a mim mesmo. O tempo não é mais senhor de nada. Não existe simplesmente linha temporal e quando bato os olhos em mim de novo, estou eu a entrar na idade de meus dois anos e nem notei. Vejo a minha mãe. Pequenina mãe. Ela chega a casa de minha avó com poucas sacolinhas e uma feição muito abatida como se fosse Rita. Como se tivesse entregando o filho à única divindade que conhecia, minha avó. Preferiu ver o filho aos cuidados dela, que entregue, talvez, aos ódios que sentiria ao ver que sua vida seria dura como a de Santa Rita. Em fins de ano pensamos o nascimento do Cristo. Revisitamos a “maternidade” em que nasceu. Imaginamos as dores de Maria (que também é o nome de minha mãe e de minha avó) enquanto não encontrava lugar para o nascimento do Deusinho. Quantas Marias pelas ruas nesse natal. Quantas Ritas. Quantos filhos. Quantas causas impossíveis.

Logo um som muito miúdo lá no fundo do escuro começa a se aproximar. Vai crescendo, crescendo, crescendo, como um trem que vem se aproximando dentro do corpo de um túnel, crescendo, muito próximo a ponto de me atropelar…


...papai, bom dia. Vamos brincar?


Meu filho me acorda.


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