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  • Foto do escritorRodrigo Souza

Carta de saudade


Meu amor.

Desde o último dia em que pude te amar com tudo que pude. Essa dor me retorna amiúde. Quando estavas em vida na minha vida, tudo arribou pra muito longe e tudo parece ida, tudo se esconde.

Meu amor, depois que tu fostes, meu deus. Depois disso tudo, fez-se uma escuridão tão oceânica, que do fundo mais profundo do negro rio do norte do mundo, ele ainda nos pode parecer iluminado. Fez-se tudo mais escuro.

Minha andorinha, minha coisa assim, uma paz tal e qual a que anseia o prisioneiro da guerrilha. Eras o tipo de uma paz de saber que o amor pode vestir-se de mulher. Pode ter as olheiras de uma mulher. Ter as delícias de uma mulher. As dores de uma mulher. E andar. Eras tu.

Quando nos meus braços pequenininha. Mas quando solta, era o quanto vale a luz e a luz da velocidade alucinante dela. A luz. Faltaria ao mundo um par de velas. Ela era o vento. Sairíamos rumo a outro quadrante do universo onde se gravita e não há a unidade de tempo. Mas voastes o teu próprio vento sozinha. Fiquei aqui, meu amor. É o que todo dia lamento.

Não sei dizer, amor meu, o que houve com o amor depois que a gente se perdeu. Morreste tão jovem, minha amada.

Morreste sem me ver sendo um homem que se enxerga. Me foi de muita valia ter enxergado o que sou. Pena que não estavas aqui e nem teu amor provou o meu amor, eu sabendo enxergar quem sou, meu amor. Por que fostes? Onde deve estar?


Me habitaria uma felicidade suficiente, não demasiada, para que eu não viesse a ser o moribundo que sou, saber que hoje tu havia se tornado amor de uma outra forma material e que estarias viva. Seja de que forma for. Da tua forma desejada. Da desejada forma que tanto se alinhava ao desenho que meu corpo ainda tem.

Por isso ainda me olho no espelho, meu amor. Estais em mim, no negativo de mim. Me vejo, ainda me olho, ainda vejo, enxergo quem sou e me vejo.

Vejo a finalidade que existe em mim. É tudo justamente por que aquilo que não sou eu, no espelho, és tu. Me sinto como o portador de um estandarte. O que leva teu pavilhão. Quero viver enquanto meu corpo desenhar o teu em mim, naquilo que não estou.

Talvez se tivéssemos morrido juntos teríamos nos tornado a claridade de uma bomba. Éramos a tranquilidade de um artefato bélico. Como uma bomba atômica suspensa por um fio de algodão. Teríamos explodido.

Eu sorrio vez ou outra, meu amor. Não sei se tu podes ver daí. Acredito que não.

"Meu deus, sou ateu até o dia em que tu me trouxer ela de volta. Amém." Rezei uma certa vez. Olha o que tua falta me fez, meu amor.

Me ajoelhei…

e até molhei a ponta do dedo de saliva para folhear as páginas de dois salmos.

Você iria se surpreender com a fé ressurgindo.

Mas logo passou. Você não voltou. E ao que me parece nem voltará. A não ser na hora em que me deitar. Toda noite. E vem desenhar nos meus sonhos as tuas flores e boa noite, meu amor. O que esmaga é que tudo era tão leve. O que tritura a minha alma é a falta do veludo da tua pele. Sou torturado hoje pelas coisas mais gostosas. É tanta dor que nem sinto. É tanta dor que nem me fere.

Borda nesse tecido do onírico momento de entregar-me a qualquer coisa por inteiro. Confesso que sempre estou a querer isso que direi. Vou dizer-te por que tu nunca saberás, nem lerás esta pequena carta. Nunca saberás que andei querendo me entregar por completo para outra coisa que não fosse tu. Desejei a morte e me deitei para entregar-me a ela numa noite de muita chuva. E ela não me quis. A morte não me quis.

Entendi a rejeição como mensagem para que eu viva para lembrar daqui que o amor andou, deitou, dormiu, beijou, acariciou, tinha voz e tinha pernas longas, sorriso imenso.

Eu sinto saudade do mundo quando o mundo sabia que existia nós dois. O nosso mundo sabia. Sempre soube e hoje está perdido. Perdeu a bússola. E nada mais é como foi um dia. De dia. De noite.


De lá pra cá, meu amor. Tudo ficou muito estranho.


Saudades.


Para sempre seu.


Nota: carta verdadeira que a personagem que a escreve realmente existe. O amor da carta também. Embora nada disso tenha ocorrido. Tuco acontece. Aconteceu. Acontecerá, acredita-se. E nem é autobiográfica mesmo sendo tudo meu. E nem é psicografia, pois muito que respeito meu próprio corpo. Não dou certas liberdades para certos espíritos. Apenas para os espíritos certos. Foi uma carta. Enfim. Uma carta e só.


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