Por esses dias escrevi um texto. O anterior a esse aqui. Achei alguns erros. Na hora chamei de erros e só depois fui entender o motivo que me fez errar tão certeiro. Sei de tantas limitações minhas. Meus erros gramaticais são limitações antigas que avalio como quem mede recorde de enchente com um tom de triunfo. Como em Manaus. As cheias dos rios são noticiadas num jeitão de orgulho.
Mas isso era quando o rio enchia.
Hoje o rio agoniza.
É diferente o apocalipse amazônico.
Acabei entrando em outro assunto.
Falava do texto que escrevi. E que errei. E que vi que os erros não eram bem “erros”, e no fundo eu tava muito raso. Mesmo sendo sempre tão profundo. Insuportavelmente profundo. E esses trocadilhos tão inúteis ao meu jeito de escrever, sou cansativo, certamente. E profundo.
Mas para além disso,
o que tem a ver o rio encher e meu jeito de escrever.
Ora, o rio tem grafia e estrutura morfológica. Mapeia. Traço comum da cartografia.
O rio é um escrever.
Eu poderia dizer.
Ficaria bonito.
O rio...
o rio é um escrever.
Lembrei do Nilo. Não que eu já tenha visto pessoalmente. Mas o Nilo, não compôs a trajetória do Egito? O Tigre, o Eufrates, não deram de beber aos sumérios? Esses mesmos que teriam inventado: a escrita.
Mas retorno ao ponto.
O que teria? O que haveria entre o erro do texto no contexto das enchentes do rio? É o braço do rio um vacilo do texto. A vírgula que separa o período. O leito de um rio, um ponto seguido. Um porto inseguro. Um leito vazio. Um travessão soturno. A várzea no escuro. Um tempo de estio. Um texto tão frio. Uma margem ou duas. Um paraná que ondula. Em linhas de um parágrafo. Frio como à noite é quando se dorme no meio do rio.
Mas, voltemos.
Não sei dizer diretamente o que penso da relação que acabei fazendo. Nesse momento, agora, nesse exato, eu não saberia mais dizer o por quê gosto de anunciar a enchente do meu rio, sabendo que aquilo um dia vai representar muitas dores. Assim como no telejornal.
Era tudo pra dizer algo sobre aquecimento global. E sobre nunca poder dizer:
“eu não aguento mais”.
Eu sei.
EU sei.
Tudo bem. Não tava parecendo que era sobre isso.
Era só pra distrair.
Mas é que eu já tava um tempo querendo mostrar que achei um texto antigo.
E ele dizia assim:
Existe um período da vida que você se encontra impedido de dizer: “eu não aguento mais”. Se não existiu ainda, eu te afirmo com toda certeza e carinho, esse dia vai chegar. Você não vai ter mais essa humilhante opção de dizer: “eu não aguento mais”.
A vida se impõe. A vida é a mais doce e encantadora crueldade. A vida é esta em que nada parece ser sobre política, sobre sexo e sobre capitalismo, sobre sexo-capitalista, sobre política-sexual, sobre sexo-político, sobre sexo cruel, sobre capitalismo doce e demais combinações dessas mesmas coisas.
Nada parece ser sobre sobreviver, também. Nada parece ser uma luta ferrenha para não implodir. Para não sucumbir. Para não ver os músculos comprimindo numa cãibra tão feroz de saudade. De saudade de quando você não via a vida tal como ela se impõe. Como um ferro frio. Um ferro frio fincado bem no meio do seu peito. E você ter que calar por que lhe tiraram o direito ao sonho. E você por alguma teimosia, o que umas pessoas entendem como a aplicação de uma energia de signo. Outras preferem ver que aquele homem, aquela mulher, aquele, sendo regido por um orixá, guiado com coragem, segue em fé. Já outros olham e dizem: que ser humano forte, de fibra. Que resiliente. Que corajoso. E nunca é sobre força, fibra, coragem ou fé. Há anos não se trata de força. Se trata da mais cabal, intransponível, imponente, oblíqua e nua verdade: A VIDA SE IMPÕE!
Se impõe como uma cavalaria. Se impõe como uma cavalaria em marcha. Se impõe como uma onda. Se impõe como uma pancada do mar. Como uma dívida. Como a queimação da cachaça. Certa. Quente. Ela se impõe. Se impõe como a realidade de um roubo. Se impõe tão crua. Se impõe como quando uma mãe perde seu filho. Como o medo de engasgar sozinho e, mesmo tendo unha, não ter onde cravar os dedos. A vida se impõe.
Ora. Se impõe como a mais certa morte. Se impõe como o beijo que nunca mais se repetirá, seja por morte, seja por desapego, seja por esquecimento, seja pelo mais afrontoso e escandaloso módulo da verdade: a vida se impõe.
No fundo, eu estava doido pra poder dizer tudo isso. Dizer que esse dia vai chegar. E talvez ele venha várias vezes. Talvez ele se repita muito. Esse dia em que simplesmente essa ferramenta não estará mais ali. Você não vai poder dispor de tal recurso. Não haverá mais como dizer: “eu não aguento mais”. E vai levantar. E vai seguir. E sublimar. Vai ignorar por vezes. Vai sair pelas narinas, outras vezes. Virá um amargo “eu não aguento mais”. E virá tão na ponta do último ponto antes da fala se desprender do cérebro e da língua. E vai voltar de onde surgiu. E você vai sentir o que dizem por aí que se “engole um sapo”. É exatamente um sapo. Um sapo gosmento. Rugoso. De aspecto tenebroso, bruto. Não só um sapo, mas um sapo vivo. Esperneando.
A vida se impõe.
Como o mais nojento dos dejetos ofende o olfato. Se impõe. E te provoca ânsia. In-con-tro-lá-vel. Se impõe. Impiedosa. A vida se impõe como um adeus. A vida se impõe como a saudade de um filho. A vida se impõe como a ausência de um pai. A vida se impõe como a negligência de uma mãe. A vida se impõe como um filho que acabou não sendo nada do que esperavam. Ao contrário. Muito pelo contrário. Pois a vida se impõe!
Cai sobre nós com a forma mais poderosa, clara, límpida, translúcida. A verdade que nenhum ser humano haverá de escapar: a. vida. se. impõe.
Não tenho a opção, no momento, de dizer: eu não aguento mais.
E sigo. Seguimos. Sigamos.
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