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Foto do escritorRodrigo Souza

O céu é cinza e o coração é quente


A ponta do dedo indicador deslizando a superfície opaca da mesa empoeirada, desenha uma forma imprecisa. Uma reta, duas. Um círculo. Corta ao meio. Estica a palma da mão direita, conferindo o quão denso é o pó que está suspenso no ar desde sempre, desde cedo. 

Lembra como o dia começou. Viaja de volta à poeira suspensa de um outro lugar onde fez abrigo e inimigos imaginários, amigos marginais, o regresso ao subúrbio, à margem de um rio que não vê mais. A cidade inteira é periférica. A cidade é toda fronteira. A população toda é estrangeira. A pátria inteira é imigrante. O céu é cinza e o coração é quente.

A palma da mão esticada agora decide abrir a opacidade da fina poeira que ainda resta intacta. Desvirgina a mesa, revelando a cor da madeira. A mesa nua. A mesa escura. A mão inteira é bege, a poeira leve. A poeira leva. Palma da mão tensa e opaca de terra fina. Aproxima a palma como quem impunha um espelho.

A seca língua, retirada de dentro da boca, esbranquiçada de um café puro como o ar, se aproxima com lentidão a palma daquela mão. A pouca saliva da língua arrasta pelo terreno da mão. Da proximidade do punho até a ponta do indicador. Na ponta, uma quantidade surpreendente da mais tediosa poeira. Engole. Sorri. E segue o dia na ponta dos dedos.

Deslizando a superfície opaca. Desenha uma forma imprecisa. Uma reta, duas. Um círculo. Corta-se ao meio. Estica a palma da mão direita, conferindo o quão denso é o dia, que está suspenso no ar desde sempre, desde cedo. 


Lembra como a vida começou. Viaja de volta à fogueira suspensa dos seus dias onde fez abrigo e inimigos imaginários, amigos marginais, o regresso ao subúrbio, à margem de um rio que não tem mais. A cilada inteira é perdida. A cidade toda tonteia. A população toda é estrangeira. A pátria inteira é imigrante. O céu é cinza e o coração é quente.

A palma da mão esticada agora decide abrir a opacidade da fina poeira que ainda resta intacta. Desvirgina o dia, revelando a dor da segunda-feira. À mesa, nua. A dor escuta. À mão, inteira bege. A pálida pele. Palma de uma bananeira, de terra firme. Aproxima a boca como quem imputa um pecado.

A seca língua, retirada de dentro da boca, esbranquiçada de um beijo surdo como o mar, se aproxima com sofreguidão a face do teu seio na mão. Dos ossos saltados da tua bacia até a reentrância de tua maquinaria. Na ponta da minha língua uma quantidade surpreendente da mais viscosa certeza. Engulo. Sorrio. E sigo o dia na ponta dos dedos.

Deslizando a superfície opaca. Desenho de forma imprecisa. Uma reta, duas. Um círculo. Corto-me ao meio. Estico a palma da mão direita, conferindo o quão tenso é o dia, que está suspenso no ar desde sempre, desde cedo. 


Aponto o medo indicando que esse ano a superfície opaca da minha mente é prejudicada, como resenha de um livro que não se leu. Uma reta, duas. Um círculo. Exponho o aperto, cortado ao meio. Estico a planta da casa inteira, conferindo o quanto penso no pó que está suspenso no ar desde sempre, desde o centro.

Lembrar como o dia terminou. Viajo de volta à poeira suspensa de um outro lugar onde fiz de artigos e inimigos imaginários, amigos marginais, o regresso ao subúrbio, à margem de um rio que não me banha mais. A cidade inteira é periférica. A cidade é toda fronteira. A população toda é estrangeira. A pátria inteira é imigrante. O céu é cinza e o coração é quente.

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