“
"Quem me dera ao menos uma vez
ter de volta todo ouro que entreguei a quem
conseguiu me convencer que era prova de amizade...”
A letra “Índios” do músico e poeta de uma geração Renato Russo, figura entre as mais conhecidas do grupo musical Legião Urbana, que entre as décadas de 80 e 90 fizeram a juventude brasileira ter reflexões catárticas enquanto vivenciavam um contexto histórico conturbado.
Ainda hoje é possível extrair de tal letra uma contemporaneidade que mostra a magnífica capacidade de expressão do compositor, mas que ao mesmo tempo nos deixa tomados do sentimento absurdo de sua validade para nossos dias. Ainda nos encontramos em situação progressivamente devastadora. E é intencional a colocação dos termos anteriores de radical “progresso” e “devastação”.
O dito progresso nos tem mostrado caro e ameaçador na medida em que conhecimento tecnológico não teve como consequência a qualidade de vida material principalmente para a periferia do capitalismo, algo evidenciado com a pandemia da COVID 19, e para os que partem de uma situação desfavorável nas condições da reprodução da vida. Há o aumento do consumo a custas do desequilíbrio ecológico e desigualdades sociais cada vez mais sentidos diariamente.
Cabe lembramo-nos do ideal positivista, que em especial se estimulou no Brasil, tanto que tremula na bandeira nacional de que a ordem e o progresso no tempo e na história caminhariam para um inevitável patamar civilizacional idealizado eurocentricamente. Tal formulação do positivismo tem August Comte[1] como provedor.
Há uma postura expectante e sempre desejosa do progresso que o tempo traria e que a história teria apenas o papel apenas de registrar. Haveria um fluxo inevitável que arrastaria tudo e todos ao destino que a epstemologia ocidental erigiu como civilização, inscrevendo todos os povos como caçadores de um estilo de viver e pensar padronizado e de encaixe europeu como um sol ao qual necessita-se orbitar.
Walter Benjamin é um dos grandes críticos no século XX deste tal fluxo inevitável. Marxista único, teve na luta de classes sua base e a referência da Tese XI, onde Karl Marx afirma, “os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo”[2].
No emblemático Teses Sobre o Conceito de História[3], na tese de número sete, Walter diz que ao materialista histórico cabe a “tarefa de escovar a história a contrapelo”. Ou seja, ir no contrafluxo determinado da história positivista. É fazer o percurso tendo como ponto inicial a história dos vencidos, dos molestados em seus afetos, dos aturdidos em sua organização social, política e religiosa, enfim, os que se tornaram despossuídos e subalternizados.
No que se refere à música de Renato Russo, coube a interpretação de que se trata de um diálogo entre dominado e dominador. Num lamento em relação passado a figura do dominado, no caso posto como o “índio”, termo generalizador e redutor da gama abissal de povos indígenas, lamenta que no passado houve uma relação de confiança quebrada por parte do dominador que levara tudo o que era de valioso, e isto representado pelo ouro. O compositor chama no final da canção a um afeto frustrado do dominado quando diz de uma saudade que sente de tudo que ainda não viu. Afeto este que pode ser do jovem indígena que hoje tem acesso restrito ou apagado por conta do empreendimento colonial. Jovem este que muitas vezes é obrigado a se deslocar de seu lugar de origem para se inserir no contexto urbano, ou para acessar programas de assistência social, ou na busca pelo acesso ao ensino escolar regular ou superior.
Há que se pôr em questionamento constantemente que dentro do que o ensaísta Eduardo Galeano coloca, em que o povo indígena geralmente é tido como possuidor de artesanato e não de obra de arte, de saber, mas não de ciência, entre outros pensamentos julgadores e colonizados. É necessário atentar para que a descolonização do pensamento e do encadeamente do pensar científico leve em conta que há uma cosmogonia por parte do saber ancestral indígena.
A canção refere-se ao diálogo em estado de sofrimento entre o dominado e dominador que pode ser replicado na atualidade com toda a vigência pois a violência contra os povos originários é ininterrupta. Walter Benjamin continua a convidar à reflexão e à escrita da história à contrapelo. Cabe-nos a reflexão aprofundada e aberta sobre qual instrumento utilizaremos escová-la. Se haveremos de produzir uma história não apenas pontuando a participação indígena nos processos, ou se empreenderemos uma busca por uma ciência originárias que compõem as epstemologias do Sul, como colocado por Boaventura de Sousa[4].
[1] LACERDA, Gustavo Biscaia de. Revista Sociologia. Política. Vol.17 no.34 Curitiba. 2009 [2] MARX, Karl. Teses Sobre Feuerbach.1845. [3] BENJAMIN, Walter. Teses sobre o conceito de história. 1940. [4] SANTOS, Boaventura de Souza. O fim do império cognitivo: a afirmação das epstemologias do Sul. Ed. Autêntica, 2019.
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